CHACINA NA KAOP: QUANDO A FARDA VIRA LICENÇA PARA MATAR

Já se sabia que a Plícia Nacional de Angola não é propriamente um altar de respeito pela vida humana. Mas de vez em quando, ela própria faz questão de nos lembrar disso, com requintes de crueldade dignos de um filme de terror, só que neste caso o sangue é real, as balas são reais, e os mortos não voltam no próximo episódio.


POR: HORÁCIO DOS REIS

As imagens que circulam nas redes sociais sobre a chacina na zona da Kaop, em Viana, província de Luanda, mostram-nos um retrato sem filtros daquilo que o Estado angolano tem a oferecer ao seu povo em tempos de crise: fuzilamentos sumários, espancamentos públicos e a transformação de bairros em campos de extermínio. Uma cidadã desarmada, alvejada a sangue frio como se fosse um javali no mato. Ao lado, o filho assiste à execução com o olhar vazio de quem acaba de descobrir que viver em Angola pode ser mais perigoso do que enfrentar uma guerra civil.

Mais atrás, corpos tombados. Gente como nós. Gente que podia ser teu primo, tua mãe, teu vizinho. Ninguém sabe o crime que cometeram, talvez tenham ousado sair à rua, respirar, protestar. Talvez nem isso. Mas a pena foi dada ali mesmo, sem direito a defesa, juiz ou tribunal. Em Angola não há pena de morte, dizem os livros. Mas parece que a Constituição também anda a ser alvejada.

Enquanto isso, ouvimos do ministro do Interior, num tom quase técnico, que foram registadas 22 mortes. Uma estatística lida como se fosse o resultado de um jogo de futebol. Entre os mortos, um agente da polícia do Kalumbo. E os outros 21? Vidas sem nome, sem rosto, sem justiça. Quem matou essas pessoas? A resposta é tão óbvia que chega a ser ofensivo perguntar. E, no entanto, ninguém foi responsabilizado. Nenhum agente suspenso. Nenhum comandante interrogado. A farda protege. O crachá absolve. E o silêncio do sistema confirma.

É claro que não se pode aceitar vandalismos e assaltos a superfícies comerciais. Mas quando o combate ao crime se transforma em licença para matar, não se está a restaurar ordem nenhuma, está-se a substituir um crime por outro, mais grave, mais monstruoso, mais covarde. Porque o Estado não pode ser bandido institucional. Quando se troca a justiça pela força bruta, o que se instala não é ordem pública. É terror público.

Fica difícil não recordar que são exactamente este tipo de práticas que já levaram governantes africanos ao Tribunal Penal Internacional. Não se pode usar armas de guerra em bairros onde as armas mais comuns são panelas vazias. Não se pode normalizar o assassinato de cidadãos como resposta ao caos social. Ainda que se detenham 1.200( Mil e Duzentas) pessoas, nenhuma delas parece ser um dos gatilhos fáceis da nossa polícia.

No fundo, está-se a enviar uma mensagem: em Angola, a vida humana vale menos que o vidro partido de um supermercado. E mais uma vez, quem devia proteger, extermina. Quem devia garantir, silencia. Quem devia respeitar, humilha.

Mas continuem, sim. Continuem a matar em nome da ordem. Um dia, quando já ninguém tiver medo, a polícia pode descobrir da pior forma, que o povo, mesmo desarmado, é muito mais perigoso do que pensavam.

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